quinta-feira, 25 de março de 2021

BALADA DE GISBERTA

O assassinato de Gisberta Salce Junior abalou Portugal de um modo que nenhuma das centenas de mortes de travestis e transexuais que ocorrem no Brasil todos os anos consegue nos abalar. Ocorrido em 2006, o crime já rendeu filmes, peças de teatro, uma música de Pedro Abrunhosa eternizada por Maria Bethânia e agora um livro que é uma porrada. Porque o narrador de "Pão de Açúcar", de Afonso Reis Cabral, é ninguém menos do que um dos meninos que espancou nossa conterrânea até a morte, ao longo de vários dias. Gisberta é achada por ele em uma barraca improvisada, dentro do esqueleto de uma obra inacabada - o supermercado do título. Carcomida pela AIDS e pela tuberculose, ela não consegue mais fazer shows nem programas, e parece ter chegado ao ponto mais baixo possível. Só que ainda não. O moleque e seus amigos passam a visitá-la diariamente. Levam comida, como se fosse para um bichinho ferido. Ouvem e contam histórias. O narrador está fascinado por aquele "homem com mamas", e chega a ter ereções quando pensa nele. Até que o segredo se espalha, outros garotos se juntam ao grupo original e passam a bater em Gisberta, por maldade e diversão. A prosa de Reis Cabral não é das mais fáceis de navegar: além das construções de frase tipicamente lusas e dos termos que não se usam no Brasil, o texto também sofre de uma certa afetação, incompatível com a cabecinha de um puto de apenas 12 anos. Mas "Pão de Açúcar" é um mergulho na alma masculina em formação, de alguém que pode ser provedor e violento ao mesmo tempo e com a mesma pessoa. Um livro belo em seu horror. Por falar em beleza, o autor também não é de se jogar fora.

6 comentários:

  1. O Mio Babbino Caro
    Eu vejo essas nossas Irmãs das profundezas e canto: "Eu sou rebelde por que o mundo quis assim,
    Por que nunca me trataram com amor" e algumas são mais lindas que um dia em seu esplendor.

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  2. Com tudo que está acontecendo, não dá para escolher essa leitura.
    Já li reportagens a respeito, e é um verdadeiro filme de terror. Miséria humana em todos os sentidos!

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  3. Já a espera do livro recém-comprado.
    Essa tragédia ocorreu no mesmo ano que cheguei aqui. Anos depois, em 2014 descobri a bela interpretação de Maria Bethânia, fiquei impactado, não conhecia Bethânia nem Gisberta, em 2015, lá estava eu no Porto, vendo-a de perto no seu espetáculo Abraçar e Agradecer (24/5). Arrebatou-me para sempre, naquela noite ela atendeu a todos os que desejavam dar-lhe um afago no camarim.
    2016 volto ao Porto para visitar os arredores do lugar onde Gisberta morreu. Eu, que não estava morta, abri grindr, em menos de 2horas já tinha date. A casa do gajo era pertinho do “LUGAR A VISITAR”. A partir daí, tudo foi um sonho, nos apaixonamos, quase casamos e hoje somos amigos.
    Enfim, graças à tragédia nasceram grandes alegrias em minha vida. Já lá se vão 5 concertos de Bethânia entre Porto e Lisboa, 1 do Caetano e filhos, e uma crescente devoção a escritores em língua portuguesa, sem falar na fonte inesgotável de brasilidade no canto de Bethânia. Ah, também leio diariamente as publicações deste maravilhoso blog. Obrigado Tony pela curadoria.

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  4. Betânia não tem o sucesso que merecia ter!

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