Alguém aí sabe dizer de cabeça o nome de algum presidente venezuelano anterior a Hugo Chávez? Aposto que não. Foi Huguinho, com seu jeitão hiperativo, quem conseguiu incluir seu país no mapa mental dos brasileiros. Antes dele, a Venezuela era apenas mais um dos nossos vizinhos, dos quais só a Argentina não costuma ser solenemente ignorada. Além disto, o caudilho se tornou um autêntico "popstar": lembro de uma multidão de curiosos se acotovelando para vê-lo em pessoa, numa de suas muitas passagens pelo Brasil. Só faltava estarem fantasiados de "little monsters".
O legado de Chávez é complexo e vai levar algum tempo para ser digerido. É inegável que ele conseguiu reduzir os níveis de miséria de seu país. Gente que não tinha nada agora tem alguma coisa. "El Comandante" também desalojou quase toda a antiga elite venezuelana, uma das mais
predatórias da América Latina. O dinheiro do petróleo era desviado para
paraísos fiscais e mansões em Miami. Agora boa parte dele é investido em programas sociais. Por isto, a popularidade de Chávez na periferia de Caracas equivale à de Jesus Cristo. Perto do dele, o prestígio de Lula parece efêmero como o de um ex-BBB.
Mas, por melhores que fosse suas intenções - e nem sempre eram boas - também é inegável que Hugo Chávez era um péssimo administrador. Não sabia como tocar um país, nem chamou gente que soubesse para lhe ajudar. Recheou as estatais com seus asseclas: camaradas que não tinham o menor preparo para cuidar de uma hidrelétrica ou uma petroleira, só a carteirinha do partido. O resultado foram apagões em tempos de represas cheias, desabastecimento nos supermercados, corrupção gritante e criminalidade galopante.
Além disto, o falecido também não se preocupou em diversificar a economia. O petróleo corresponde a 95% das exportações do país, e se seu preço cai, o país cai junto. É inadmissível que, com climas e terrenos tão favoráveis, os venezuelanos tenham que importar coisinhas básicas como frango e leite.
E será que podemos dizer que "el intumbable" foi um político hábil? Certamente menos do que Lula, que resistiu bravamente à tentação de jogar as classes mais baixas contra as mais altas. Chávez jamais procurou o consenso: sempre foi radical. Ou tudo, ou nada. Conseguiu o apoio imorredouro dos pobres, mas alienou a pequena classe média para todo o sempre. Era amado e odiado em proporções estarrecedoras, como nem nosso ex-presidente conseguiu ser.
Apesar de promover eleições regulares, pouco tinha de democrata. Perseguiu todos os órgãos de imprensa que não lhe puxavam o saco, no que foi prontamente copiado por Rafael Correa, Evo Morales e Cristina Kirchner. Conseguiu fechar uma emissora de TV de grande audiência, o que lhe garantiu a adesão das demais. Chávez vinha de uma família de militares: não negociava, como Lula aprendeu a fazer nos sindicatos. Soltava ordens e não admitia contestação. Um estilo que fez escola em boa parte do continente.
Seu mito começou a ser cultivado ainda em vida. Agora virou praticamente um mártir, e seus seguidores tentarão transformá-lo em Evita. A afirmação de que seu câncer foi "provocado" pelos Estados Unidos faz parte da construção de sua aura. Sua sombra ainda vai pairar sobre a Venezuela durante muitas décadas, como aconteceu com Getúlio no Brasil ou Perón na Argentina. Políticos de todos os matizes se proclamarão os únicos e verdadeiros continuadores de sua obra.
Nicolás Maduro provavelmente será eleito nas próximas eleições - quer dizer, se estas acontecerem mesmo, porque na Venezuela sempre se arruma uma desculpa para tudo. De qualquer forma, o ex-motorista de ônibus deve continuar no poder. Os problemas parecem infinitos: a inflação absurda, o câmbio descontrolado, a carestia crescente. Ele também não tem um décimo do carisma de seu antecessor: vai ser difícil hipnotizar as massas. Mas, pelo menos até o momento, parece que haverá uma transição tranquila.
Estive muitas vezes na Venezuela e sempre percebia uma tensão latente no ar. Tinha medo que o país descambasse para uma guerra civil. Pelo jeito, esse risco é menos iminente do que eu temia. Ainda bem. Se não houver derramamento de sangue, a morte de Hugo Chávez já não terá sido em vão.
O coronel encontrou a saída. Mas o resto de seu país continua no labirinto.
(Quer ler um artigo sobre Hugo Chávez muito melhor que este post? Clique aqui: é assinado por Rubens Ricúpero e foi publicado no "Valor".)